
Entrevista a:
Flávio Ascenço
Líder Técnico da Associação Mundial de Biogás e da Associação de Digestão Anaeróbica e Biorrecursos

Sobre a Associação Mundial de Biogás
A Associação Mundial de Biogás é a associação comercial global para os setores de biogás, gás de aterro e digestão anaeróbica (DA), dedicada a facilitar a adoção do biogás globalmente. Acreditamos que a adoção global das tecnologias de biogás é uma oportunidade multifacetada para produzir energia limpa e renovável, enquanto resolve questões globais relacionadas com o desenvolvimento, saúde pública e crescimento económico. Procuramos representar todas as organizações que trabalham na indústria do biogás a nível internacional em todo o mundo, incluindo: associações nacionais, operadores e desenvolvedores de biogás, fornecedores de equipamentos, empresas de água, setor agrícola, empresas de resíduos e instituições académicas e de investigação.
Conhecendo a realidade de tantos países, diria que Portugal tem boas condições para criar um mercado importante de valorização dos biorresíduos, nomeadamente para produção de energia? Porquê?
Portugal tem excelentes condições para criar um mercado de valorização dos biorresíduos tanto para a produção de energia (sendo esta em modo de biometano, geração elétrica ou térmica) como para a produção de biofertilizante pois dispõe de uma forte indústria alimentar e de bebidas, uma expressiva produção agrícola e pecuária, além de uma elevada densidade populacional urbana, que contribui significativamente para a geração de resíduos orgânicos.
Excesso de resíduos orgânicos de diferente fontes, como agricultura, silvicultura, pesca, aguas residuais e os resíduos urbanos. Estes resíduos estão neste momento a contribuir para o aquecimento global e causando um impacto negativo no ambiente. Estes materiais podem ser convertidos numa solução valiosa como, biogás, biometano, Bio Co2 ou Fertilizante.
Apoio governamental e políticas ambientais: Plano Nacional de Energia e Clima de Portugal estabelece metas ambiciosas de redução de emissões de gases de efeito estufa e aumento da produção de energia renovável. Neste plano os resíduos orgânicos terão um papel crucial para atingir a metas estabelecidas.
Alguma tecnologia já instalada para processo de resíduos, pequenas adaptações serão necessárias, considerações e colaborações globais serão essenciais para assistir este progresso e implementação de tecnologias resilientes e eficazes.
Biorresiduos tem o potencial de satisfazer a procura interna das necessidades de Gás de Portugal. Portugal tem ainda a oportunidade de beneficiar de mercados de exportação para energia proveniente de biorresíduos.
Fertilizantes sustentáveis para uso agrícola, e reduções das emissões de carbono proveniente do fabrico de fertilizantes sintéticos.
Benefícios sócio económicos com criação de trabalhos não só no sector das energias renováveis mas também no sector agrícola. UE estima mais 500 mil postos de trabalho relacionados com a indústria de Biogás e perto de 2 milhões até 2050.
Um estudo feito pela WBA mostra que se todos os resíduos orgânicos forem redirecionados para DA, a CAGR para realizar todo o potencial do biogás até 2030 será superior a 40%. Claramente Portugal tem abundância de resíduos orgânicos e, portanto, é óbvio que o potencial para o mercado de biorresíduos está presente e está a avançar.
Quais as vantagens e oportunidades do biogás e biometano face a outras soluções de descarbonização?
A digestão anaeróbia tem certamente uma abundância de vantagens quando comparada com qualquer outra tecnologia ou método de descarbonização. Eu gosto de dizer que a digestão anaeróbia é a maneira mais sustentável de "desfossilizar" o setor energético.
Vantagens:
Redução dos GEE (maioritariamente reduz emissões de metano que são 84 vezes mais potentes do que o CO2 num período de 20 anos e 28 vezes num período de 100 anos).
Capacidade de armazenamento e flexibilidade energética (pode ser contido durante períodos de tempo e ser utilizado dependendo da necessidade).
Uso variado, para combustíveis (automóvel e até transformado em combustível de aviação sustentável), geração elétrica, biometano usado como substituto de gás natural, armazenamento de combustível ou para geração de calor.
Economia circular, transformando um problema ambiental (gestão de resíduos) em múltiplas soluções valiosas – biogás, biometano, bio-CO2 e biofertilizantes e outros coprodutos.
Independência e segurança energética, necessária para garantir estabilidade do país e também estabilidade económica, especialmente no período em que vivemos com o impacto que pode ser causado por terceiros.
Com base nestas vantagens, as oportunidades são claras: redução de emissões e atração económica para mercados de carbono e certificados, utilização das linhas de gás e estrutura elétrica já implementada, descarbonização rápida do setor energético e do transporte (transporte de pesados, navios e aviões) e uma transição energética de modo sustentável sem desflorestação ou impacto na fauna local.
E tendo tantas vantagens porque é que ainda está tão aquém do seu potencial? Que barreiras enfrenta o desenvolvimento exponencial deste mercado?
Portugal, tal como muitas regiões do mundo, ainda enfrenta várias barreiras que trazem uma restrição enorme ao potencial e vantagens da digestão anaeróbica e produtos associados, tais como biogás, biometano, bio-CO2, biofertilizantes, redução de GEE e processamento de resíduos orgânicos. Especificamente para Portugal há várias barreiras económicas, regulatórias, técnicas, culturais e até estruturais:
Altos custos iniciais:
É necessário um investimento significativo para a construção e implementação da tecnologia das instalações de biogás.
O retorno de investimento é muitas vezes a longo prazo, o que desincentiva o investimento, especialmente se não houver apoios estáveis.
Obstáculos regulatórios e de mercado:
Variações nas regulamentações, legislação complexa e várias incertezas quanto aos biorresíduos, injeção na rede e outros.
Políticas, agências e ministérios fragmentados. Atrasos no planeamento de licenciamento de projetos.
Ausência de mercados estruturados para biometano e reduções de carbono.
Barreiras técnicas:
Complexidades na purificação, armazenamento, transporte, modos standard, uniformização de processos e verificação do biogás. Falta de formação na indústria.
Culturais:
Baixo conhecimento público e empresarial, pouca valorização institucional, falta de reconhecimento dos benefícios associados ao biogás, biometano e produtos adjacentes.
Infraestrutura:
Rede de gás com poucas conexões ou limitações de injeção. Poucas estações de GNC e de pontos de consumo. – Salientar que a Floene está a fazer um excelente trabalho nesta área.
Implementação de uma estrutura regulatória adaptada à indústria do biogás e consequentes controlos e inspeção para garantir a operacionalidade e performance destas unidades.
O Programa Making Biogas Happen, criado pela World Biogas Association, facilita o crescimento da indústria com a geração de uma estrutura regulatória mundial do biogás e de um sistema internacional de certificação de unidades (ADCS) de biogás.
E, Portugal ainda vai a tempo de apanhar este comboio dos gases verdes? Como pode acelerar?
Sim, claramente, pois Portugal tem um potencial inexplorado (considerando a grande quantidade de resíduos agropecuários, florestais e urbanos com valor energético). Estes, associados ao setor da agricultura, serão ideais para garantir fertilizantes e aumentar a atividade agrícola em Portugal.
Portugal já tem uma infraestrutura de gás implementada, razoavelmente desenvolvida e pronta para ser adaptada à injeção de biometano. É de salientar ainda que Portugal é pioneiro em muita inovação, com universidades, empresas e startups com capacidade de inovação na bioenergia.
No contexto europeu, a UE quer atingir metas exigentes de 35 bcm de biometano já até 2030 (plano REPowerEU lançado a 18 de maio de 2022). Há fundos europeus disponíveis para financiar projetos verdes. Portugal pode beneficiar destes fundos e, assim, assegurar a menor dependência de gás importado e garantir também benefícios socioeconómicos com a geração de mais emprego neste setor.
Agora, para acelerar este processo, é claro que temos muito trabalho para fazer, mas não temos de começar do zero. A Associação Mundial de Biogás criou o Programa Making Biogas Happen para garantir um crescimento rápido, resiliente e seguro.
O Programa Making Biogas Happen foi composto por dois pontos-chave para o desenvolvimento do setor:
Estrutura regulatória mundial do biogás com 9 pilares onde estão recomendações para que os governos incentivem a harmonização regulatória e o investimento no uso das melhores práticas, políticas e tecnologias implementadas pelo mundo.
Sistema Internacional de certificação de unidades de biogás com 11 módulos para garantir operações reguladas, práticas operacionais e standards de higiene, segurança e proteção do meio ambiente. Inclui também uma metodologia de Avaliação do Ciclo de Vida (LCA) adaptada para o biogás e vinculada aos benefícios de sequestração de carbono.
Portugal ainda vai a tempo — mas o comboio está a sair da estação.
É crucial que se crie um "Biogas Road Map Portugal" com as considerações e adaptações necessárias que estão presentes no programa Making Biogas Happen.
Com o Making Biogas Happen, vontade política, visão estratégica e mobilização dos setores certos, o país pode tornar-se líder no sul da Europa em gases renováveis.
Portugal tem as condições ideais para se tornar uma referência na valorização de biorresíduos e produção de biogás e biometano. Para tal, é fundamental ultrapassar as barreiras existentes sem reinventar a roda. O MBH tem as ferramentas necessárias para o comboio sair da estação e tornar-se rapidamente no desejado TGV.